O princípio da conservação dos contratos


O princípio da conservação dos contratos

A definição do princípio da conservação dos contratos e suas aplicações na jurisprudência
Texto: Samuel Chrysostomo



O princípio da conservação dos contratos é aquele segundo o qual diante de algum defeito sanável ou imprevisibilidade na execução do contrato prefere-se o saneamento à resolução do contrato, e isso até mesmo por via judicial. Mas vamos olhar o tema com um pouco mais de atenção.

É sempre muito interessante perceber e poder ratifica a natureza científica e sistêmica do Direito. Digo isso porque, à primeira vista, o tema do princípio da conservação dos contratos poderia ser entendido como antagônico ao princípio da autonomia da vontade das partes (pacta sunt servanda). No entanto, um olhar mais detido perceberá que, se considerados o princípio da função social do contrato, o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da equivalência material, perceberemos que todos podem – e devem – coexistir, ou antes permear-se, com o objetivo primordial de evolução da ciência jurídica e principalmente de sua inserção e correlação com seu contexto social (mais um exemplo de aplicação da tridimensionalidade do direito de Miguel Reale – Fato, Valor e Norma).

Seguindo esta ideia de contextualização, chamo a atenção para o fato de que nosso Código Civil de 1916 foi fortemente influenciado pelos ideais do liberalismo, favorecendo e enaltecendo o indivíduo e, consequentemente, elevando a autonomia da declaração de vontade e a liberdade para sujeitar-se às estipulações derivadas desta vontade a um patamar de cânone.

O Código Civil de 2002 surge em outro momento histórico, um momento em que os valores sociais encontram-se mais fortemente estabelecidos, não em um sentido de socialismo, mas de maior respeito pelas interações sociais, principalmente as economicamente aproveitáveis. E isso em decorrência da verdade irremovível da interdependência econômica em todos os planos da vida social, inclusive em nível internacional. Assim, se entendermos o contrato como instrumento da realização dessas interações economicamente aproveitáveis que ultrapassa o plano da relação entre as partes contraentes, poderemos entender a relativização da autonomia da vontade inserida no Art. 421 que passa a ser exercida “em razão e nos limites da função social do contrato”.

E se entendermos que, ao preservar o contrato, estamos na verdade protegendo os seus frutos, fica mais fácil entender o princípio da conservação dos contratos em detrimento de sua resolução. Dito de outra maneira, ao buscar mecanismos que possibilitem a preservação do liame contratual, o operador do direito está buscando alternativas para manter a possibilidade de geração de riqueza e a circulação de divisas – as tais interações sociais economicamente aproveitáveis a que me referi. Mas cabe aqui uma ressalva: se por um lado a autonomia para contratar deve observar os parâmetros da função social do contrato, por outro, a preservação do contrato não pode prosperar se não estiverem presentes a manutenção da equivalência material das prestações mútuas e também a possibilidade de resgatar aquela declaração de vontade que fez nascer o próprio contrato.

Em suma, o que se deve buscar para a manutenção do contrato são remédios, soluções alternativas à sua resolução. Um exemplo destes remédios possíveis é busca do reequilíbrio contratual no advento da onerosidade excessiva a uma das partes como se pode verificar nos Arts. 478 a 480. Neste sentido temos também o Art. 317, que trata de “desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução”, podendo a parte recorrer à tutela jurisdicional. Note-se que em cada caso há requisitos importantes para que a revisão seja possível, mas este não é o propósito deste artigo.

Passando a alguns exemplos práticos, podemos verificar que existe ampla jurisprudência no sentido da aplicação do princípio da conservação, algumas mais em âmbito consumeristas, tratando de questões como possibilidade de purga de mora em contratos de alienação fiduciária; mas há também outras em âmbito estritamente cível, dentre as quais gostaria de destacar uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, que manteve a validade de notas promissórias, fulminando somente os juros abusivos em contrato de mútuo feneratício segundo Recurso Especial nº 1.106.625 - PR (2008/0259499-7), de onde extraio o seguinte ensinamento, que me parece resumir todo o anteriormente exposto com brilhantismo e experiência muito superior a minha. O texto é da lavra do Relator Ministro Sidnei Beneti:

“A ordem jurídica é harmônica com os interesses individuais e do desenvolvimento econômico-social. Ela não fulmina completamente os atos que lhe são desconformes em qualquer extensão. A teoria dos negócios jurídicos, amplamente informada pelo princípio da conservação dos seus efeitos, estabelece que até mesmo as normas cogentes destinam-se a ordenar e coordenar a prática dos atos necessários ao convívio social, respeitados os negócios jurídicos realizados. Deve-se preferir a interpretação que evita a anulação completa do ato praticado, optando-se pela sua redução e recondução aos parâmetros da legalidade”.



Samuel Chrysostomo
Advogado da Wärtsilä Brasil.

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